Exploração

Trabalho infantil: o que é, causas, consequências e combate

Dados apontam que, em Pernambuco, 75 mil meninos e meninas enfrentam todo dia a luta pela sobrevivência. ''Hoje, podemos dizer que o trabalho infantil tem cor e tem classe'', afirma procuradora do MPT

Adriana Victor e Leandro Oliveira
Adriana Victor e Leandro Oliveira
Publicado em 30/08/2019 às 13:30
Reprodução/TV Jornal
FOTO: Reprodução/TV Jornal

A menina tem a bacia presa ao corpo para vender coentro na feira livre de Caruaru, no Agreste; o adolescente que mora nas ruas do Centro do Recife ganha dinheiro ajudando a estacionar carros; 13 meninos e meninas são flagrados pela fiscalização do Ministério Público do Trabalho descascando macaxeira em casas de farinha de Ipubi e Araripina, Sertão de Pernambuco. Mais expostos ou invisíveis, 2,5 milhões de brasileiros, entre 5 e 17 anos, seguem submetidos ao trabalho infantil, segundo dados do Unicef. Em todo mundo, são 152 milhões de crianças e adolescentes trabalhando quando não deveriam. Em Pernambuco, os dados de 2017 contam 75 mil meninos e meninas em situação de trabalho infantil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad).

Números que, se não crescem, ainda revelam e expõem desigualdades sociais. “Hoje, podemos dizer que o trabalho infantil tem cor e classe social: são crianças, filhos e filhas de pessoas negras e pobres”, afirma Jailda Pinto, procuradora do Ministério Público do Trabalho de Pernambuco (ver mais na página ao lado). “A pobreza é causa e consequência do trabalho infantil. Não há trabalho infantil nas famílias que têm condições de sustentar seus filhos e filhas. Falamos em ciclo intergeracional da pobreza, de uma herança que vem desde a escravidão.”

Trabalho de qualquer natureza, abaixo da idade mínima permitida, que é entre 5 e 13 anos, ou na idade permitida, de 14 a 17 anos, mas sem carteira assinada, é considerado trabalho infantil. No Brasil, o trabalho é permitido por lei a partir dos 16 anos, desde que não seja em situação insalubre, perigosa ou no horário noturno.

“Eu costumo falar que tive a idade da infância, mas não tive a infância propriamente dita. Via as crianças indo pra escola, eu não ia. Via as crianças brincando, eu não tinha tempo pra brincar”, revela Luiza Batista, presidente da Federação nacional das Trabalhadoras Domésticas. Ela começou a trabalhar em casas de família aos 9 anos. Só hoje tem consciência de que foi vítima de assédio moral: ouviu xingamentos, sofreu diversas agressões verbais. “Mas, na época, nem sabia o que era assédio, eu só chorava”, conta. “Tinha o sonho de ser advogada. Ficou só no sonho.” Sem diploma, Luiza segue defendendo, com seu trabalho, a categoria das empregadas domésticas e ajudando a denunciar casos como o seu. Muitos deles, ocorrem dentro das casas e sem qualquer tipo de controle ou fiscalização.

Piores

O trabalho doméstico é considerado uma das piores formas de trabalho infantil. Outras 93 atividades estão listadas no Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008. Ele trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e relaciona ainda atividades como a agricultura, pesca, construção, comércio – funções que podem ser servir de porta de entrada para outras violações e que deixam prejuízos para vida toda. “Uma criança exposta ao trabalho infantil está exposta a assedio, ela está exposta a violência”, define Renata Aléssio, psicóloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco. “Então, ela está construindo relações com os pares de forma não protegida, de exploração. No futuro, ela pode ser uma pessoa que vai enxergar o mundo por essa via, da exploração.”

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O adolescente, cujo nome vamos omitir, estava na noite de uma sexta-feira chuvosa no Bairro do Recife. É lá que ele dorme e acorda. E também trabalha. Usa o dinheiro que ganha como flanelinha para comer. “Compro comida”, diz balançando as moedas de uma mão para a outra. “Mas compro drogas também, não vou mentir.” Dois outros meninos tentavam levar fregueses para os barcos que fazem a travessia entre o Recife Antigo e Brasília Teimosa, na Zona Sul. Um deles, sem camisa, tremia de frio. Outro ajudava o pai a vender espetinhos. “Quando ele não pode vir, venho só. Mas vou para a escola. Quero ser policial”, confessou. Um dos que vendiam bombons sonha em ser médico.

Em diversas feiras livres de Caruaru encontramos meninos e meninas trabalhando: carregam compras dos fregueses, manipulam facas, lidam com dinheiro, ajudam pais e mães a vender os produtos, comercializam cigarros. Além dos riscos, perpetuam uma prática ilegal, que priva meninos e meninas de exercer atividades que lhes pertencem: estudar e brincar.

A história da Família Miguel

A estrada de terra no meio da cana-de-açúcar é o caminho até a Granja Esperança, lugar onde vive a família Miguel, em Nazaré da Mata, na Mata Norte de Pernambuco. Na trajetória das quatro gerações da família, retratos da relação entre trabalho infantil, educação – ou a falta dela – e transformação. Mesmo que a mudança chegue a passos bem mais lentos do que os necessários.

Seu Elias Miguel, aos 73 anos, é o primeiro a lembrar as dificuldades que enfrentou na infância, no Sertão da Paraíba. “Muitas vezes a gente não tinha o que comer. Desde muito pequeno, trabalhei na roça, plantando milho, feijão e algodão”, lembra. “O Sertão é mais difícil do que aqui”, diz. E chora. Seu Elias não lê nem escreve, não frequentou a escola. “Precisava trabalhar.”

Eládio, o filho mais velho, tem o registro na carteira de trabalho: aos 12 anos já cortava cana. Com sacrifício, conseguiu estudar. “Me acordava às 5 horas, ia pro engenho que ficava a meia hora de casa. Passava o dia cortando cana. Chegava e, muitas vezes, sem nem jantar, ia pra escola. Cansado, claro.” A volta para casa só acontecia no final da noite. Hoje Eládio é avicultor. E confessa que queria ter estudado muito mais.

Último

Elex, que todo mundo chama de Léo, foi o último entre os filhos de seu Elias que precisou estudar e trabalhar – também cortando cana na Mata Norte, num tempo ainda sem o rigor da legislação e sem as normas mínimas necessárias para segurança e dignidade no trabalho dos canaviais. É ele quem conta as maiores dificuldades da família: “A gente não dormia em cama, era rede e esteiras espalhadas pelo chão. Muitas vezes, era comida pouca pra muita gente. O trabalho era o jeito.” Trabalhando sem deixar de ir à escola, Léo conseguiu concluir os estudos; prestou concurso, foi aprovado. Hoje é funcionário público.

“Posso dizer que me livrei da tortura. Que conquistei a minha a minha liberdade”, afirma. “Na cana, eu só ganhava o que produzia. Podia passar o dia todo no sol – se não produzisse, não tinha renda. No serviço público, faço o meu trabalho correto e tenho hora para entrar e hora para sair. E salário certo no final do mês.”

As crianças da família Miguel correm pelo terreiro da Granja Esperança, jogam futebol, fazem as tarefas da escola. Nenhuma delas precisou trabalhar. Os que enfrentaram o sol e as lavouras, querem e se esforçam para que todas elas se dediquem aos estudos e às brincadeiras de infância. Nada mais do que isso.

Hoje, a família de Seu Elias Miguel quer as crianças longe do trabalho infantil
Hoje, a família de Seu Elias Miguel quer as crianças longe do trabalho infantil
Bianca Sousa / JC Imagem