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CASO MENINO MIGUEL: Um ano da queda que revelou o pior do Brasil

Miguel Otávio caiu do 9º andar de um prédio de luxo quando estava sob os cuidados da ex-patroa da mãe, uma doméstica que trabalhava em meio a pandemia

Marcelo Soares
Marcelo Soares
Publicado em 02/06/2021 às 6:30 | Atualizado em 07/12/2022 às 19:18
Reprodução/TV Jornal
FOTO: Reprodução/TV Jornal

“O Brasil no seu pior está retratado nesse episódio. É uma coisa que, se alguém colocar em um roteiro, alguém vai falar: ‘Ah não, mas tá muito exagerado’”.

O relato da cantora e compositora Adriana Calcanhotto se refere à tarde da terça-feira, 02 de junho de 2020, quando o Brasil se deparou, de forma trágica, com algumas das suas maiores mazelas: o racismo estrutural, a corrupção e a desigualdade.

Foi por volta das 13h que o menino Miguel Otávio Santana da Silva, 05 anos, caiu do 9º andar de um prédio de luxo no Centro do Recife, no condomínio conhecido como Torres Gêmeas, localizado no bairro de São José.

A criança acompanhava a mãe, Mirtes Renata Santana de Souza, que trabalhava como empregada doméstica e teve que ir para a casa dos patrões mesmo em meio a uma pandemia.

Miguel estava sob os cuidados da ex-patroa da mãe, Sari Gaspar Corte Real, primeira-dama no município de Tamandaré, no Litoral Sul de Pernambuco.

Ela e o marido pagavam os empregados de casa com dinheiro público. Miguel foi entregue à própria sorte para que a ex-patroa da mãe dele pudesse continuar pintando as unhas.

O que ele mais queria, naquele momento, era a mãe, que passeava com o cachorro da família da ex-patroa.

Mirtes Renata precisou levar o filho para o trabalho por causa do fechamento de creches e escolas devido à pandemia da Covid-19. Ela não tinha opção.

No dia da morte de Miguel, o Brasil registrava 558.237 infectados, sendo 36.463 só em Pernambuco. No Recife, havia restrições e a orientação era ficar em casa.

Somente os serviços essenciais estavam autorizados e o trabalho doméstico remunerado não estava inserido nesse grupo. Mas Mirtes Renata e tantas outras trabalhadoras não tiveram essa escolha.

Enquanto os patrões conseguiam cumprir o isolamento e a quarentena, as empregadas domésticas eram obrigadas a se arriscar para manter o emprego. A única alternativa de Mirtes era convencer Miguel a ficar.

“Ele dizia a todo instante: ‘mamãe, eu quero ir para casa’. E eu dizia: ‘filho não dá, mamãe precisa trabalhar’. Eu devia ter trabalhado menos. Era para eu ter me imposto. Se eu tivesse feito isso, eu acredito que isso não teria acontecido com meu filho”, lamenta Mirtes Renata.

A necessidade que os ex-patrões de Mirtes tinham de tê-la dentro de casa encontra uma explicação nas obras de Gilberto Freyre, segundo Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

Para ela, a analogia à obra Casa Grande & Senzala do escritor pernambucano é quase que inevitável.

“A Casa Grande, como nós chamamos a elite, não abre mão da servidão. Não abre mão de ter uma empregada doméstica dentro de casa. Lavar um copo, ou lavar uma louça que usou, para eles, é um trabalho de menor valor", pontua Luiza Batista.

O sindicato das empregadas domésticas de Pernambuco estima que quase 120 mil mulheres trabalhem como empregadas domésticas no Estado.

No Brasil, são 4,9 milhões, de acordo com o último levantamento do Dieese, feito no ano de 2020 com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua) do IBGE.

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Desse total, 4,5 milhões são mulheres. E do total de mulheres, 3 milhões são mulheres negras, assim como Mirtes Renata e a mãe dela, a também empregada doméstica Marta Santana.

As duas também são o retrato de boa parte dos lares brasileiro: mulheres no comando, negros e pobres. Parcela expressiva da sociedade que se arrisca todos os dias na luta pela sobrevivência.

E essa luta pela vida, de acordo com o filósofo Érico Andrade, professor da Universidade Federal de Pernambuco, não tem idade, mas tem cor.

“(Deixar Miguel sozinho no elevador) Revela a mentalidade de que as pessoas negras têm que se virar. Não interessa se Miguel tem 05 anos de idade. Não interessa se é uma criança. Ele tem que saber se virar, mesmo sem nunca ter entrado em um elevador sozinho”, pontua Érico Andrade.

A negligência que resultou na morte de Miguel Otávio é traduzida em racismo para muitos teóricos e líderes de movimentos que lutam pela igualdade racial. Esse preconceito, que se revela nos detalhes, não deveria encontrar espaço dentro da sociedade brasileira.

“Em um país como o Brasil, que é tão plural, ter o racismo como uma das principais mazelas estruturais da sociedade acaba sendo a maior incoerência na qual a gente vive e o principal motivo para a gente ser uma sociedade tão desigual e tão cruel”, reforça Manoela Alves, presidenta da Comissão de Igualdade Racial OAB-Pernambuco.

Morte de Miguel Otávio trouxe à tona mazelas do Brasil, como racismo estrutural, corrupção e desigualdade
Morte de Miguel Otávio trouxe à tona mazelas do Brasil, como racismo estrutural, corrupção e desigualdade - Acervo Pessoal / Divulgação

Morte de Miguel revelou esquema de corrupção

A tragédia da morte de Miguel Otávio também revelou um desvio de dinheiro público. O salário que Mirtes Renata e a mãe, a também empregada doméstica Marta Santana, recebiam saía dos cofres da prefeitura de Tamandaré desde 2017 e não das finanças pessoais dos patrões.

Os nomes das duas constavam como servidoras na folha de pagamento do município, mesmo não exercendo nenhuma função na administração pública.

Foram quatro anos trabalhando para o casal e recebendo a quantia de R$ 1.315.

De acordo com depoimentos prestados no Departamento de Repressão ao Crime Organizado (Draco), da Polícia Civil, que investiga o desvio do dinheiro público, Mirtes e a mãe contaram que assinaram os contratos com a Prefeitura de Tamandaré a pedido da primeira-dama do município.

“A gente não questionou pelo fato de que a gente precisava trabalhar. E, segundo, por que a gente não via nada de errado nisso. Havia uma outra funcionária que recebia pela prefeitura”, explicou Mirtes.

A boa relação que Mirtes e Marta tinham com os ex-patrões foi abalada após a queda de Miguel. Apesar do bombardeio de informações, Mirtes demorou a saber os detalhes que levaram à morte do filho.

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Foi no cemitério, no dia 03 de junho, um dia depois do acidente, que ela descobriu que Sari Corte Real havia deixado o garoto sozinho no elevador para continuar fazendo as unhas em casa, onde a manicure a aguardava.

“Eu vi realmente quem é Sari Corte Real. Uma mulher fria. Ela não estava arrependida. Ela diz que não fez nada. Ela ainda nega ter apertado o botão do elevador”, comenta Mirtes.

Adriana Calcanhotto compôs música para Miguel

A atitude da ex-patroa foi uma das coisas que mais incomodou a cantora e compositora Adriana Calcanhotto, que escreveu uma música sobre a tragédia envolvendo Miguel Otávio.

“Eu acompanhei todo o vídeo que foi analisado pela polícia e a parte onde ela (Sari) conversa com a vizinha é a pior de todas", disse a cantora.

"É onde fica revelado a frieza. A ex-patroa da Mirtes perde tempo na hora de ajudar. Ele (Miguel) está com vida no chão, ela sobe para pegar a chave do carro e para para conversar", comentou.

"Ela está preocupada com ela, e não com ele.", pontua Adriana Calcanhotto que, afirmou em entrevista à TV e Rádio Jornal, que escreveu a música 02 de Junho porque não conseguiu lidar bem com a história do Miguel.

Adriana Calcanhotto compôs uma música sobre a morte de Miguel e recebeu Mirtes Renata na sua casa no Rio de Janeiro
Adriana Calcanhotto compôs uma música sobre a morte de Miguel e recebeu Mirtes Renata na sua casa no Rio de Janeiro - Reprodução / TV Jornal

No dia da morte de Miguel, Sari Corte Real pagou uma fiança de R$ 20 mil para responder ao processo em liberdade.

No início das investigações o delegado entendeu o caso como homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Indiciamento que Mirtes acredita que teria sido diferente se fosse com ela.

“Imagina se fosse o contrário? Se eu tivesse deixado cair o filho da patroa? Eu estaria presa, apanhando.”, questiona Mirtes Renata.

Depois dos depoimentos das testemunhas e perícias realizadas no edifício, a tipificação do crime foi alterada para abandono de incapaz com resultado morte.

A primeira audiência de instrução e julgamento aconteceu em 03 de dezembro, seis meses depois da morte de Miguel. Foram ouvidas oito testemunhas de acusação e quatro de defesa.

De acordo com o Tribunal de Justiça de Pernambuco, uma nova audiência será marcada. Desta vez, para ouvir testemunhas e realizar o interrogatório de Sarí Gaspar Corte Real. Ainda não há data.

Homenagem à Miguel e processo de superação 

Mirtes Renata transformou a dor em luta e passou a estudar direito para ajudar outras pessoas
Mirtes Renata transformou a dor em luta e passou a estudar direito para ajudar outras pessoas - Reprodução / TV Jornal

Miguel Otávio era a vida de Mirtes Renata. Era pelo filho que ela saía todos os dias para trabalhar, se esforçava para pagar escola particular, plano de saúde, passeios em família e não deixar faltar nada.

Para superar a dor de perder o único filho, Mirtes resolveu voltar a estudar e transformar sua história em luta.

“Por tudo isso que eu venho passando, me vi na necessidade de fazer uma faculdade de direito para entender melhor o processo do meu filho e poder ajudar outras pessoas. Para evitar que elas não passem por tudo que eu venho passando”, comentou Mirtes.

A morte de Miguel também está ajudando a salvar vidas. Um núcleo de pesquisa e projetos voltados para os direitos humanos foi criado na Universidade Federal de Pernambuco e ganhou o nome de Instituto Miguel.

De acordo com os coordenadores, Hugo Monteiro e Humberto Miranda, a ideia foi unir iniciativas relacionadas ao cuidado com a vida, da infância ao envelhecimento, além de se aproximar da promoção da justiça social.

Nesta quarta-feira (02), um ano depois da morte de Miguel, Mirtes Renata vai acender uma vela em homenagem ao filho, assim como aconteceu no segundo dia de todos os meses que se passaram.

As lembranças saudosas e, ao mesmo tempo, doídas são os únicos momentos em que ela encontra o filho. Um menino alegre, inteligente e brincalhão, que não perdia o Carnaval nem os festejos de São João.

“É um dia bem difícil. Todo o dia 02, até o fim da minha vida, eu vou estar lembrando que a gente perdeu Miguel”, finalizou Mirtes.